Tendo
em vista a proposta do Curso de Atualização em Liturgia, promovido pelo Centro
de Liturgia “Dom Clement Snard” em parceria com a “Unisal”, inspirado pela
maneira do centro de fazer ciência litúrgica e pela provocação feita pelo Pe.
Danilo, que trabalha com minha turma o tema Mistério Pascal, foi sugerido que
visitássemos uma Igreja de nossa preferência e que ali aplicássemos o método da
observação participante em relação a alguma parte da Celebração “algum Rito”,
relacionando a forma como fora realizado com o mistério que era celebrado.
Escolhi
visitar novamente a Igrejinha do Beato Anchieta, localizada no Pátio do Colégio,
local da fundação da cidade de São Paulo, pelo referido beato. O padroeiro já
me é caro, uma vez que, diz-se que fora o mesmo religioso que fundara em 1585 a
minha cidade, Guarapari/ES; para além desse fato, nosso grupo já havia no
domingo da Epifania do Senhor visitado aquela Igreja, com objetivo de observar
o espaço celebrativo.
Então
partindo da observação que havíamos feito, fui projetando a minha observação. A
beleza do espaço realmente me impressionou, por fora uma construção em estilo
colonial e por dentro um espaço moderno (obra do grande arquiteto Cláudio
Pastro, presente na celebração), despojado, de simplicidade incomum e de raro
bom gosto, faz com que o fiel realmente se sinta bem. A iluminação é baixa na
medida certa a Igreja não é escura, mas também não é muito iluminada.
Alguém
me lembrava que o aconchego de um ambiente “pouco iluminado”, relembra o útero
materno. De fato, a palavra útero me veio na cabeça novamente. No centro da
Igreja, sob um arco que condizia a nave lateral da Igreja foi colocada a fonte
batismal, que jorrava durante toda a celebração.
Por traz da fonte, um painel de azulejos chamou minha atenção (segundo informações foi obra de Cláudio Pastro), no painel está gravada uma versão em português de um trecho do seguinte texto:
GENS SACRANDA POLIS
HIC SEMINE NASCITVR ALMO / QVAM FECVNDATIS SPIRITVS EDIT AQVIS / VIRGINEO FETV
GENITRIX ECCLESIA NATOS / QVOS SPIRANTE DEO CONCIPIT AMNE PARIT / COELORVM
REGNVM SPERATE HOC FONTE RENATI / NON RECIPIT FELIX VITA SEMEL GENITOS / FONS
HIC EST VITAE QVI TOTVM DILVIT ORBEM / SVMENS DE CHRISTI VVLNERE PRINCIPIVM /
MERGERE PECCATOR SACRO PVRGANTE FLVENTO / QVEM VETEREM ACCIPIET PROFERET VNDA
NOVVM / INSONS ESSE VOLENS ISTO MVNDARE LAVACRO SEV PATRIO PREMERIS CRIMINE SEV
PROPRIO / NVLLA RENASCENTVM EST DISTANTIA QVOS FACIT VNVM / VNVS FONS VNVS
SPIRITVS VNA FIDES / NEC NVMERVS QVEMQVAM SCELERVM NEC FORMA SVORVM / TERREAT
HOC NATVS FLVMINE SANCTVS ERIT.
Traduzido
seria:
Aqui nasce um povo de
nobre estirpe destinado ao Céu, que o Espírito gera nas águas fecundadas. A Mãe
Igreja dá à luz na água, com um parto virginal os que concebeu por obra do
Espírito divino. Esperai o reino dos céus, os renascidos nesta fonte: a vida
feliz não acolhe os nascidos uma só vez. Aqui está a fonte da vida, que lava
toda a terra, que tem o seu princípio nas chagas de Cristo. Submerge-te,
pecador, nesta corrente sagrada e purificadora, cujas ondas, a quem recebem
envelhecido, devolverão renovado. Se queres ser inocente, lava-te nestas águas,
tanto se te oprime o pecado herdado como o próprio. Nada separa já os que
renasceram, feitos um por uma só fonte baptismal, um só Espírito, uma só fé. A
nenhum aterrorize o número ou a gravidade dos seus pecados: o que nasceu desta
água viva será santo”.
Este
texto originalmente encontra-se inscrito em uma arquitrave, sobre a piscina
circular onde antigamente os cristãos eram baptizados por imersão que fica no
centro do Batistério da Basílica de São João de Latrão, rodeada por oito
formosas colunas de pórfiro com capitéis jónicos e coríntios.
Os
versos são atribuídos ao Papa São Sisto III (432-440), onde se resume, de forma
admirável, a doutrina cristã sobre o Batismo. Soam tão magnificamente que eu
guardei a sincera vontade de que naquela celebração alguém fosse batizado, mas,
não aconteceu.
Do
lado oposto ao da fonte batismal, também ao centro da capela do lado direito de
quem entra, sob outro arco e a frente de outro painel de azulejos (este gravado
com o prólogo do Evangelho de São João), está a mesa da palavra.
Chamou-me
a atenção e encantou-me que mesmo já tendo passado o tempo pascal, bem na
frente do lugar destinado ao livro encontrava-se aceso o Círio Pascal (segundo
informações permanece assim durante todos os dias), parece-me que o que isso
quer expressar é que a palavra de Deus é luz para a vida da comunidade,
decidi-me então por recortar no meu relatório a liturgia da palavra.
A
Introdução ao Lecionário da Missa, no número 3, ao referir-se ao valor
Litúrgico da Palavra de Deus, assim asseverou:
Nas diferentes
celebrações e nas diversas assembleias das quais os fiéis participam de maneira
admirável, exprimem-se os múltiplos tesouros da única Palavra de Deus, seja no
transcorrer do ano litúrgico, em que se recorda o mistério de Cristo em seu
desenvolvimento, seja na celebração dos sacramentos e sacramentais da Igreja,
seja nas respostas de cada fiel à ação interna do Espírito Santo. Deste modo, a
mesma celebração litúrgica, que se sustenta e se apoia principalmente na
Palavra de Deus, converte-se num acontecimento novo e enriquece a palavra com
uma nova interpretação e eficácia. Por isso, a Igreja continua fielmente na
Liturgia o mesmo sistema que usou Cristo na leitura e interpretação das
Sagradas Escrituras, visto que ele exorta a aprofundar o conjunto das
Escrituras, visto que ele exorta a aprofundar o conjunto das Escrituras,
partindo do “hoje” de seu acontecimento pessoal.
Partindo
do ponto de vista teórico do documento supracitado, fui me integrando na
observação, os Ritos iniciais cumpriram seu papel “conduzir as mesas”. As
musicas eram muito bem executadas, por um coro que com perfeição unia o popular
ao erudito (o que é o ideal como me disse em uma conversa o padre Baronto), em
um repertorio estritamente litúrgico.
Já
durante a procissão de entrada, ficou evidente para mim que naquela celebração
do Mistério Pascal de Cristo, eu iria poder me alimentar bem da palavra e de
seu corpo e sangue; a frente um ministro trazia uma cruz, símbolo mais forte do
mistério da morte e ressurreição impossível naquele momento, logo atrás dele
uma leitora conduzia elevado o livro dos evangelhos.
Assim
que terminaram os Ritos iniciais, dois jovens, um rapaz e uma moça, partindo do
presbitério se dirigiram a mesa da palavra, esta trata-se de fato de um ambão,
lugar alto (conta inclusive com alguns degraus). A primeira leitura foi
proferida pela moça. Em seguida veio o salmista que desceu do coro e em um
movimento rápido e discreto chegou à mesa da palavra de onde cantou em uma
melodia muito bela o salmo que era alternado pelo povo por um refrão como é
costume no Brasil. A segunda leitura foi proferida pelo rapaz.
Ambos os leitores com uma voz suave e segura puderam ser tranquilamente escutados por toda a assembleia. Durante estes momentos era incrível o silencio quase que sepulcral que se fazia no interior da belíssima capela, ouvia apenas o som da água jorrando na fonte batismal, o barulho externo (infelizmente comum a cidade de São Paulo e as grandes cidades do Brasil) e os murmúrios de alguns turistas como eu que talvez estivessem preenchidos do mesmo encantamento.
Quando
terminou a segunda leitura, respeitados alguns instantes de silencio o coro
iniciou o aleluia da Aclamação. Segundo o numero 62 da Instrução Geral ao
Missal Romano: “Tal aclamação constitui um rito ou ação por si mesma, através
do qual a assembleia dos fieis acolhe o Senhor que lhe vai falar no Evangelho,
saúda-o e professa sua fé pelo canto”. De fato, foi isso que aconteceu! Durante
o cântico o presidente tomou o Evageliário e dirigiu-se a mesa da palavra,
enquanto os olhares e as vozes da assembleia o acompanhavam. Em seguida,
cantando proclamou o Evangelho.
Terminado
o evangelho todos retornaram para seus lugares no presbitério. E sobre a mesa
da Palavra, iluminado pelo Círio Pascal, permaneceram os Evangelhos. O padre,
um homem de meia idade, de media estatura e de longa barba, trajava uma casula
gótica de cor dourada com galão vermelho, sentou-se na cadeira da presidência e
sentado como os anciãos nas sinagogas ou mesmo nossos pais em casa, iniciou a
homilia.
A homilia pareceu-me preparada por uma exegese muito bem realizada, era de fato uma conversa em família, não pela intervenção das pessoas como muito se teima em querer fazer Brasil a fora, mas pela maneira como cada assunto foi abordado. Para o Padre a Festa que celebrávamos era a Festa da Eleição de Jesus, é um marco da solidariedade de Deus para com a humanidade. Partindo do texto da primeira leitura, do livro do Profeta Isaias, ele disse que: O Servo ali mencionado era todo o povo eleito e que é todo o povo eleito que dever ser luz para as nações.
Prosseguindo
com a reflexão constatou que diferente dos outros Reis Ele (Jesus) não foi
ungido apenas com o óleo, mas com o próprio Espírito Santo. Chamou atenção da
assembleia para o fato de que nos quatro evangelhos aparece a noticia do
Batismo de Jesus, os Evangelhos Sinóticos fazem toda uma narrativa, enquanto
que o Evangelho de João apenas faça menção ao fato. Mas, é nas peculiaridades
do Evangelho de Lucas que ele prossegue, segundo ele são três:
·
Jesus se apresentou para o Batismo.
·
É enquanto Jesus orava que o céu se abre,
Deus fala e o Espírito Santo vem.
·
E o Espírito desceu sobre Jesus em forma de
Pomba, o evangelista frisa a forma corporal.
E
então levanta-se uma questão: Porque o Justo (Jesus) entrou na fila dos
pecadores?
Os
pecadores eram batizados por João para serem lavados, eram uma multidão e Jesus
se apresenta do meio deles. O Filho de Deus quis fazer-se igual a nós. É essa
solidariedade de Deus que nos permite a Salvação, segundo o padre. Com essa
atitude Ele santificou as águas onde todos os pecadores foram mergulhados. Ele
prosseguiu dizendo que: não é o batismo de João que confere o Espírito Santo a
Jesus. Mas que é naquele episodio que depois de trinta anos no anonimato, Jesus
assume publicamente a missão que o Pai lhe deu. Assim, o religioso afirmou que
é na oração que o céu se abre, que a terra e o céu se comunicam e que é
possível fazer a experiência de Deus. É na ação do Espírito Santo que acontece
naquele ato a assim chamada “Investidura messiânica” de Jesus Cristo.
E porque o Espírito teria forma de pomba? Essa imagem figurativa aparece varias vezes. Na criação, o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Um antigo comentário rabínico afirmava que era em forma de pomba que ele pairava. No dilúvio, a pomba traz a Noé a noticia que as águas haviam baixado, que estava realizada aquela aliança. Jonas quer dizer pomba, significa que a comunidade é o lugar do Espírito. Assim, em Cristo se dá uma nova criação, uma nova oportunidade. É pelo mistério pascal de Cristo que o Espírito está presente na comunidade cristã e que em Cristo “servo” se realizou o amor do pai. Toda a liturgia da palavra desembocou na profissão de fé, rezada por toda a assembleia, e na oração universal, que foi cantada por uma mulher e respondida por todos com a expressão “ouvi-nos Senhor”.
Participar
de uma celebração assim, tão significativa, diante de tudo que se tem
experimentado no atual fest food religioso que nos oferecem as redes de
televisão, me fazem perceber o que é fundamental para que esses ministros que
lembram apresentadores de programa de auditório, eles próprios não descobriram
a profundidade teológica dos nossos ritos e estão perdidos em suas tentativas
de se realizarem quanto às celebrações que presidem, confundindo sacralidade
com suntuosidade e mistagogia com sentimentalismos baratos. As comunidades
precisam reconhecer nos ritos a sua fé. A comunidade do patteo do collegio é
uma comunidade que vive em torno da liturgia e encontra nela todo o seu
alimento, esse talvez seja o modelo ideal de comunidade católica. A organização
eclesial em torno de tantos grupos, movimentos e pastorais (embora importante),
pode ser a fonte da dispersão que faz com que as pessoas vivam uma experiência
de fé cada vez mais individual e quando procuram realiza-la em comunidade
acabam se frustrando (o que se celebra na Igreja não é a liturgia do seu grupo).
É possível que todas as atividades (caridade, famílias, jovens) que a fé cristã
exige brotem da celebração do mistério pascal, bastando apenas colocar, como
foi feito na comunidade observada, a celebração como fonte da atuação, até mesmo
que em detrimento das estruturas organizacionais.
Lucas Francisco Neto
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